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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

LEITURA EDIFICANTE


Faz de conta que você é um trapezista e que está numa plataforma a 20 metros de altura esperando sua vez de se lançar no espaço vazio. Você se preparou, fez vários treinos com e sem rede e sabe que pode contar com seus companheiros que estão ali do outro lado. Naquele centésimo de segundo antes de se jogar, tudo o que você precisa fazer é encher o peito de confiança: em si mesmo e, principalmente, é claro, nos outros. Você inspira fundo, toma impulso e vai como se fosse possível voar sem asas e desafiar a lei da gravidade para sempre naquele curto espaço de tempo. E, quando inexoravelmente começa a cair, alguém pega com vontade nos seus pulsos e o traz de volta para aquela coreografia impossível e bela sob o céu colorido de um picadeiro.
Uma das cenas mais bonitas entre pais filhos é ver uma criancinha correr de braços abertos em direção a seu pai ou sua mãe para se jogar neles com a maior felicidade. Ela sabe que vai ser amparada e acolhida com segurança e amor e por isso não tem a menor dúvida. Isto é, ela tem total confiança na vida. E o que faz alguém se lançar no mundo com essa mesma coragem, determinação e alegria?
Isso mesmo, a confiança. A própria palavra confiança tem em si mesma o segredo de como ela nos dá essa força que nos permite ultrapassar nossos próprios limites e medos para acreditar na begnidade da existência. Confiar vem do latim con fides, isto é, com fé. A confiança, portanto, é uma questão de fé. A gente pensa que a fé pertence ao universo da religião, que está apartada da vida comum, mas isso não é verdade. É a fé que nos preenche o coração na hora de nos atirarmos num projeto, nos entregarmos em relacionamentos, perseguirmos um objetivo. Não se pode saborear plenamente a vida sem fé. Ela é nosso mais poderoso catalisador de energias.
E fé é muito mais que crença ou dedução de um raciocínio lógico. Ela é incondicional. Isto, é não depende de conclusões, lógicas, probabilidades, previsões. Muitas vezes, até, ela vai exatamente em direção oposta ao que tem chance de dar certo. A fé, basicamente, é um exercício dinâmico de coragem. E coragem, como o próprio nome diz, é ter o coração na ação. Quando colocamos o coração naquilo que fazemos, somos impulsionados pela fé, pela confiança. Ultrapassamos assim uma série de bloqueios e obstáculos, internos e externos, com resultados impossíveis de serem atingidos sem sua presença.
Por isso a confiança é tão poderosa. Dezenas de pesquisas mostram que a fé é decisiva para a manutenção da saúde, por exemplo. Pode ser tanto a fé em Deus quando a fé na v ida, num sonho, num projeto. Mas ela é fundamental para nossa saúde física e psíquica, diz Sueli Gevertz, psicóloga e coordenadora de comunicação da Sociedade Brasileira de Psicanálise.
Então a próxima pergunta é: se a confiança na vida é tão importante, por que não nos atiramos de peito aberto de uma vez por todas? É o que veremos em seguida.
Couraças musculares
Vamos voltar para o exemplo da criancinha que se atira nos braços do seus pais. Logo, logo ela vai perceber que o mundo não é tão generoso e seguro quanto esse abraço reconfortante. E que, se estiver de peito aberto, pode se ferir. E aqui vamos encontrar o principal motivo da perda da confiança: o medo da dor.
Esse temor, segundo o criador da bioenergética, Wilhelm Reich, vai se refletir no corpo formando couraças musculares, que são a corporificação física dos nossos medos e defesas. Vamos enrijecendo, tanto psíquica quanto fisicamente. Até o ponto de nos tornarmos totalmente tortos, se as defesas forem desproporcionais à realidade. O medo, como as couraças, é necessário na vida, porque nos protege e nos ajuda a sobreviver. O que não pode é sempre querer enxergar a existência apenas através dele, diz a psicoterapeuta corporal paulista Irene Cardotti, especializada em bioenergética e terapia ocular. Isto é, há o momento da couraça, do escudo e da defesa, como também existe a hora do peito aberto e da entrega. E como fazer essa escolha com sabedoria?
Uma das respostas é se manter firme sobre seu próprio eixo. Quando a gente tem os pés bem plantados no chão, está firme, seguro. Temos confiança porque sabemos que não é qualquer coisa que vai conseguir nos derrubar, diz Irene. A figura da árvore frondosa, com seu tronco firme mas com seus galhos flexíveis acompanhando o vento, é muito útil para a gente visualizar quem tem confiança na vida e sabe se adequar a seus movimentos e impermanências, diz Irene.
Outra saída para dissolver as couraças é ativar o corpo com exercícios de flexibilização, como ioga, tai chi, dança, circo, alongamento e práticas de bioenergética. E saber descarregar o excesso de energia na terra, andando descalços, por exemplo. É preciso aprender a reconhecer que não podemos carregar pesos emocionais em excesso. Eles podem se acumular no corpo, na couraça dos ombros, por exemplo, e a gente fica como se fosse o gigante Atlas, carregando o mundo nas costas, curvado, tenso, fechado, incapaz de abrir os abraços, mostrar o peito e confiar no mundo, afirma a psicoterapeuta. Isto é, além de soltar o corpo em exercícios de flexibilzação, é preciso saber descarregar a energia. E saber dizer não, não posso, quando o peso emocional for excessivo. Com o tempo e ao autoconhecimento, sabemos perfeitamente quando o peso que conseguimos suportar já deu, diz Irene.
Flores, uvas e pêssegos
Mas o que dizer se realmente a gente foi muito machucado durante a vida? Como voltar novamente a confiar no mundo? A artista plástica Isabel Abranches (nome fictício), por exemplo, sofreu um ataque sexual aos 16 anos, na saída da escola. Foi muito traumático para ela. A mãe nunca soube de nada (nunca contaram a ela por causa de sua rigidez e intolerância), mas o pai decidiu, de comum acordo com Isabel, que era melhor a jovem viver algum tempo em outra cidade. E assim ela foi para a casa da sua avó Güeli, num pequeno vilarejo do Rio Grande do Sul. O casarão ficava entre parreiras de uvas negras muito doces e pés de pêssego. Em seu pequeno quarto, todos os dias havia flores frescas no vasinho do criado-mudo deixadas silenciosamente pela velha senhora. Também sempre havia uma surpresa para Isabel na hora da sobremesa: morangos em calda, ovos nevados, bolo de chocolate. Na mesinha de estudos, não faltavam lápis coloridos para ela pintar e desenhar. E Isabel ainda tinha o prazer de ouvir as saborosas histórias de vida da avó Güeli à noite, que a faziam rir, sonhar e ter fé novamente na benevolência da existência. Ficaram amigas, profundamente amigas: duas mulheres, uma velha e outra jovem, que tinham a exata perspcctiva do que haviam passado, tanto sofrimentos quanto alegrias. Um dia minha avó me disse que eu era uma pessoa muito especial, que faria escolhas especiais na vida, e que por isso poderia ajudar muita gente, compartilhando minhas experiências, tanto as tristes quanto as alegres. Com essa frase, ela me deu a permissão de ser novamente eu mesma, do jeito que eu sou, diz ela. Isabel se voltou para as artes plásticas e aos 17 anos conheceu Rodrigo, seu amoroso companheiro há três décadas. É tão feliz, alegre e confiante que se tornou instrutora de um grupo espiritual. Hoje ela é capaz de ajudar outras pessoas a abrir de novo seu coração com confiança, mesmo depois de uma experiência traumática.
Às vezes temos a sorte de ter uma avó Güeli na vida para nos curar. Mas, se não tivermos, também podemos fazer isso a partir de nós mesmos: reaprender, aos pouquinhos, a nos presentearmos com pequenos prazeres, apostar de novo em nossos sonhos e ideais, descobrir novos talentos e dar um voto de confiança ao futuro. Talvez seja preciso terapia ou a ajuda de um grupo de apoio, mas o caso tem solução e certamente o sol poderá voltar a brilhar outra vez.
Como água no vasilhame
Quando se mora quase 30 anos fora do Brasil em nove países diferentes, enfrentando realidades tão distintas quanto a de belas cidades de pedra do século 17 na Bélgica ou o ambiente úmido da floresta amazônica no Suriname, é preciso ter uma confiança básica e elementar na vida. É o caso de Mônica Vilhena, que foi oficial de chanceleria do Brasil no exterior. Ela tem uma maneira poética de se expressar sobre esse assunto: A confiança é como a água, que se adapta a cada vasilhame. Ela está sempre ali, independentemente do que acontece. A situação pode mudar que ela não desaparece nem muda de volume, diz ela. Essa é a confiança verdadeira, assegura Mônica, que tem a humildade e a abertura necessárias para se adaptar a diferentes cenários. Ela enxerga o sucesso e a realização em cada situação e não vê a vida como uma sucessão de êxitos e fracassos. Por isso, não se pode perdê-la nunca, diz.
Para manter essa maneira de encarar a vida, Mônica se apoiou na sabedoria do corpo. Há 22 anos pratica e ensina biodanza, método criado pelo antropólogo chileno Rolando Toro (que esteve em março no Brasil). Apreendeu a sentir as dores emocionais sem sucumbir e a resgatar uma confiança inexorável na vida, com base, principalmente, em movimentos corporais. É só olhar para uma pessoa confiante: ela diz isso fisicamente, por meio de suas expressões corporais. E o primeiro passo para viver isso é se apoderar do próprio corpo, vivenciá-lo, senti-lo, habitá-lo, e liberar as dores emocionais que podem estar aprisionadas nele. Isso é muito curativo, afirma a instrutora.
A pessoa que confia está a léguas de distância daquele otimista insuportável que sempre acha que tudo vai dar certo, afirma a psicoterapeuta carioca Natália Assunção. O otimista de carteirinha parece que está inchado, inflado como uma bola de gás. Tudo nele tem um ar forçado, artificial. O otimista quer que as coisas dêem certo, custe o que custar. Já a pessoa confiante exala naturalidade, graça, leveza. Ela não é obsessiva diz Natália.
Então é isso: quem confia se sente seguro e tem fé na vida, não importando o que vai acontecer. Prepara-se, física e psicologicamente, tem ajuda ou pede por ela, treina muito e como Zorba, o grego (do clássico do cinema), depois do baque inicial, é até capaz de dançar com um sorriso sobre o próprio fracasso. Sinceramente, talvez você e eu ainda não tenhamos chegado a esse ponto verdadeiramente invejável. Mas tenho certeza de que, com um pouco de prática, entrega e abertura, ainda chegará o dia em que finalmente teremos coragem de chegar à pontinha da plataforma do trapézio, contemplar o ambiente e nos atirarmos. Com muito mais confiança.

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